16.8.07

Segundos Sentidos II

(quaisquer semelhanças com outras estórias não são coincidência)

3, 2, 1,… larga! O propulsor disparou o corpo musculado de Jon Arent até aos mil metros de altitude, muito acima das nuvens carregadas que afagavam aquele bocado de terra. Jon experimentou a vertigem de uma viagem forçada, contra-natura, até pairar bem lá no alto sem conhecer a gravidade.
Estarrecia com a paisagem deslumbrante de minúsculos pontos difusos lá em baixo, enquanto gaivotas com cabeça de dragão o escoltavam na aventura estratoesférica. Deixou-se ficar uns minutos, rodopiando sobre um eixo imaginário, e passarando atónito. Sabia que bastava um gesto para iniciar a descida, e imaginava a experiência do regresso como uma revisita ao ventre materno. Concentrado, activou o dispositivo mágico e sentiu o estômago colar-se-lhe aos pulmões como que magnetizados. As nuvens afagavam-lhe o cabelo loiro, enquanto a gigante copa de um pára-quedas laranja se abria suavemente no ar.
Passeava o olhar para cima, para baixo, para cada lado, sem querer perder um centímetros dos mil metros que agora repercorria em sentido inverso. Cada vez mais nítido, o arvoredo aproximava-se como um leito de redenção. Jon abandonou-se à dança balançada do pára-quedas, e estacionou o olhar no infinito, onde nada era nada.
Dois minutos mais bastaram para que se visse passar a última copa de uma árvore, depois da qual uma teia de aranha milimetricamente trabalhada o esperava para a chegada. Ateiou suavemente na cama elástica sonhada por arquitectos de outras galáxias, e espreguiçou-se como um gato de ilha grega.
Ainda sonhava com a experiência única, quando o chamaram de algures mais abaixo, do meio de castelos de areia decorados com conchas de mil cores. Deixou-se deslizar pelos braços da teia reluzente, e sentiu os pés esborrachados contra a areia fina.
Estacionou no meio de uma praça interior de um dos castelos, onde a luz entrava e saía em contínuo, projectada pelas conchas que brilhavam. Luzes coloridas que ofuscavam discernimentos. Ainda assim, Jon distinguia os vultos de duas ou três dezenas de seres que dançavam freneticamente ao som de músicas sem terra.
Ainda trôpego pela viagem vertiginosa, Jon deixou-se embalar em cada acorde disforme e seguiu o movimento dos corpos vizinhos, sem parar, sem sequer ofegar.
Devastado pela intensidade da que se fizera noite, Jon juntou as suas últimas forças e voou de novo. Voo curto, rasante e objectivo.
Seriam umas 04:00 GMT quando deu uma última volta por cima da praça, e reteve nos olhos as luzes multicolores das conchas e dos vultos em danças tribais inacabadas.

Às 04:05 GMT, mais minutos menos minuto, Rashid Lecombe acabava de esvaziar a última cerveja da noite, salgada pelo suor que lhe escorria da testa mestiça, no seu micro apartamento da banlieue parisiense. Tinha acabado de desligar o PC, e tocou a medo na campainha interna que avisava a mãe em busca de ajuda.
Rashid olhava alternadamente para os lençóis da cama desfeita e para as suas pernas imóveis sempre arrumadas na cadeira de rodas, quando a mãe entrou incomodada no minúsculo aposento.
Que sim, que era normal ficar até tarde no PC, que sim, que queria apenas ajuda para se deitar, que não, que não tinha culpa dos três balázios na espinha disparados por engano pelo gangue do bairro há quatro anos e que arrumaram a carreira de futebolista numa cadeira de rodas, que sim que também gostava muito dela…
Rashid não guardava rancor, pelo hábito. Assim acabavam normalmente as suas noites. Naquela, para variar, fechou os olhos sem lágrimas, com os olhos secos pelo vento que ainda lhe fustigava a face. Sorria por uma viagem rasgada no céu, como não se lembrava de sorrir fazia tempo.

1 comentário:

Teresa Martinho Marques disse...

Bem... quer no I quer no II começa-se e não se consegue parar. Assim é a boa escrita. A escrita que nos faz pensar, que nos transporta, que arrebata. No fundo, os livros, as palavras, foram sempre a nossa segunda vida antes desta era. A principal diferença? Agora podemos ser nós a "escrevê-la"...