Segundos Sentidos III
(quaisquer semelhanças com outras estórias não são coincidência)
Sem dar por isso, Martin Magellan gesticulava e acenava efusivamente no meio de um campo de papoilas. Tudo poderia parecer normal, não fosse o caso de não descortinar vivalma num raio de quilómetros. Não se sentia capaz de controlar os gestos, não por incapacidade, mas por uma vontade inexplicável de mexer livremente o corpo.
Saudava os pássaros que voavam em bandos, fazia vénias às abelhas que cobiçavam as flores.
No meio do manto de flores amarelas, descobriu um baloiço copiado do que usara vezes sem conta na quinta da avó, duas décadas atrás. Tentou-se a usá-lo, até porque por perto permanecia a acalmia de antes. O medo do ridículo passou despercebido, e Martin montou sofregamente o rudimentar brinquedo, baloiçando o corpo para a frente, para trás, em ritmo olímpico. Não tinha esquecido a sensação de comunhão com o horizonte que o baloiço lhe proporcionava, e sorria pela simplicidade do acto.
Passeava o olhar por cima das papoilas, recortadas num horizonte de mar escuro, onde o Sol pedia repouso. Vertiginava deliciado, até esgotar a força da paisagem.
Desceu calmamente do baloiço de ideias, e dobrou os joelhos preparando um salto virtuoso no céu. Deu duas cambalhotas risonhas, e aterrou de novo no campo.
Tudo era novo, como renascido, para Martin. Reolhou os pássaros livres, e arrancou para um voo picado em direcção à costa, onde as papoilas se encostavam à espuma das pequenas ondas que rebentavam. Fechou os braços imóvel, e deslizou até à água escura do pôr-do-sol, mergulhando progressivamente o corpo relaxado.
Debaixo de água não havia papoilas. Antes um outro mar de surpresas que lhe provocaram um arrepio na espinha. A superfície lisa e polida que admirava havia uns minutos desde o baloiço, escondia tesouros incalculáveis: pequenos cavalos-marinhos multicolores, casas de pigmeus com janelas iluminadas, peixes compridos e ondulantes pintados com flores silvestres. Uma música suave acompanhava a visita, fazendo com que Martin se sentisse numa nova dimensão.
Rodava sobre si mesmo, e de cada vez que completava uma volta, a paisagem era diferente: as casinhas iluminadas transformavam-se em barcos de papel, os cavalos-marinhos em borboletas rosadas. De cada vez que fechava os olhos e imaginava um novo cenário, quando a volta se completava deparava com o que imaginara. Apercebeu-se da lógica do processo, e brincalhou. Fechava os olhos uns segundos, e lá apareciam as coisas sonhadas. Nesse processo de reinvenção sistemática de paraísos, Martin quase adormecia com os olhos alagados e salgados.
Só não se confirmou o sono, pelo súbito som estridente de uma campainha que o fez tremer.
À mesma hora, Josep Castelló, aturdido, tremeu com a campainha da penitenciária de Sabadell. Olhou confuso para o relógio do monitor do portátil, e confirmou a chegada das 21:00 que marcava, diariamente, a hora do jantar. Na sua minúscula cela espartana, Josep desligou a máquina com os olhos cansados, e arrumou a cela meticulosamente.
Depois de três anos em Sabadell por não ter suportado a traição de Dolors com Sergi, Josep voltara nessa tarde, e pela primeira vez em mil e noventa e cinco dias, a passear a alma para além dos muros temíveis da prisão.
Ouviu as chaves rolar na fechadura, e encaminhou-se, naquela fila interminável de companheiros de infortúnio, em direcção ao refeitório.
Enquanto esperava pelo repasto, seguramente pão com tomate e feijão com enchidos catalães, fechava os olhos e girava sobre si, imaginando novos cenários que teimavam em não aparecer.
1 comentário:
Já se tornou num vicio a minha entrada neste blog e com estes contos "virtuais" ainda mais preso fico. Obrigado e espero que continue!
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