24.8.07

Segundos Sentidos V

(quaisquer semelhanças com outras estórias não são coincidência)

Os neurónios de Apolo Bling lutavam entre si medievalmente. Memórias, luzes, números e equações entravam, via retina, construindo um emaranhado de informação na sua cabeça calva, transformada numa bola de fluxos.
Desde que entrara naquele estranho espaço, tinha sido selvaticamente violado por um imaginário que lhe era desconhecido: tecnologia, interactividade, instalações, performances… As palavras (eram conceitos, diziam) ecoavam-lhe nas têmporas latejantes, mas pouco ou nada lhe diziam. Deixava o corpo fluir por trajectos retorcidos, perdendo a noção do espaço desde os primeiros metros: plataformas que subiam automaticamente, escadas que rolavam aceleradas, botões que o ejectavam para anfiteatros suspensos…
Apolo vagueava, esporadicamente parava o olhar numa imagem mais familiar, ensurdecido com sons estranhos de instrumentos sem forma.
O lugar, pelo que percebia, tinha a ver com coisas de engenheiros, objectos transformistas cheios de roldanas e parafusos. Nem sabia porque continuava ali, mas alguma força exterior segurava o seu corpo obeso com um magnetismo qualquer. Tentava voar, e não conseguia sair do chão! Tentava comunicar com alguém, e não recebia respostas! Sentia-se como um robô programado faz tempo, como uma peça de uma engrenagem complexa que não ousava enfrentar.
Por baixo de uma cúpula de lâminas, seguia uma linha rigorosa ladeada por paredes que se moviam quando avançava. Janelas abriam-se à sua passagem, com paisagens da era industrial de há dois séculos, sem que pudesse parar para as apreciar.
A velocidade a que tudo se passava tinha algo de alucinante que o fazia sentir as entranhas às voltas tentando saltar para as costas.
A única vez que se cruzou com alguém parecido consigo, foi a meio de uma sinuosa rampa descendente com aceleração exponencial; por infelicidade, ou talvez não, o outro não descia mas subia. Cruzaram-se numa esquina curvada pelo aço, e olharam um para o outro, atónitos. Apolo descobria na expressão do outro o mesmo pavor e surpresa que sentia desde que entrara naquela máquina infernal. Colou-se à sua expressão, e sossegaram os dois as ideias por escassos segundos. Não passou disso: instantes efémeros que o fizeram desligar da parafernália atordoante.
Apolo não fazia ideia de quando acabaria a viagem, mas temia pela sua saúde de espírito. Estava a ponto de sentir a cabeça explodir, sem conseguir encontrar paz em nenhures.
A luz familiar que vislumbrou, chamou-lhe a atenção. Era luz de Sol alto de meio-dia! Tinha a certeza disso, a única certeza que tinha nos últimos minutos em terras do Demo.
A luz aproximava-se rapidamente, pela velocidade a que o corpo se movia em direcção a ela. Atravessou uma plataforma de vidro e tudo abrandou repentinamente, como começara.
Viu o Sol alto e ouviu pássaros, e árvores, e mar,…
Em frente aos seus olhos queimados pela luz repentina, julgou perceber uma mensagem colada numa placa de betão: “O Centro Contemporâneo de Arte e Tecnologia agradece a sua visita, e espera vê-lo em breve! Consulte a nossa programação online.!”

José de Apolinário era o último cliente do ciber-café NetNet no centro de Luanda. Aquela hora era suposto já estar seguramente em casa, tal como os trinta e tais ciber-companheiros que ocupavam os outros postos quando ali chegou.
A experiência em que se envolvera não tinha permitido que dali saísse, e isso tentou explicar ao dono do local quando a conta lhe foi resgatada. Tinha gasto uma hora completa naquela viagem alucinante, e nem dinheiro tinha para pagar a utilização do pré-histórico PC alugado no ciber.
A custo, com a sua única perna ainda a tremer, levantou-se da cadeira e “correu” porta fora, com a muleta que herdara do avô depois do acidente com a mina perdida. O homem do ciber ficara atónito com escapatória, nem acreditando no que via. Sacana de puto, blasfemara.
José de Apolinário só parou dois quarteirões depois. Parou, e sentou-se na calçada afagando um cachorro abandonado e faminto que o seguira. José precisava de sentir um corpo quente, um pouco de sangue a correr nas veias, e desforrava-se no desgraçado animal de ventre para o ar à espera de festas, no portal do volumoso edifício da Sociedade Angolana de Tecnologia!

1 comentário:

Anónimo disse...

Fantástico!!!! Apesar de desconfiar do final (passagem sl para rl), consegues sempre surpreender e fazer com q n consiga parar de ler. Parabéns e continua :0)