20.8.07

Segundos Sentidos IV

(quaisquer semelhanças com outras estórias não são coincidência)

Julianna Seagraves não sabia por onde escolher. À sua frente desfilavam símbolos mágicos pintados a nanquim, talvez caracteres orientais, pensava, mas todos eles refinadamente compostos e equilibrados. A tarefa não era fácil, não tanto pelo que teria de pagar por um deles, mas sim porque se destinava a tatuá-lo na sua pele macia e sem adereços. Decidiu abandonar o imenso mostruário oriental, e voou até às tatuagens tribais. As mais figurativas encantavam-na, pela sua dimensão e força, até pela cor de algumas. Das tribais às góticas foi um repente. Mais dúvidas adensavam a escolha, porque também estas a fascinavam. Repensou dez vezes, olhou-se de todos os ângulos imagináveis, e, na ausência de uma solução lógica ou ideológica, tomou uma decisão: uma pequena borboleta no baixo abdómen, um dragão majestático nas costas e uns caracteres chineses (que diziam ser a palavra paz, seriam?) na face interior do braço esquerdo. Em poucos minutos fez o pagamento, e aplicou as pinturas indolores com vaidade. Recatada, afastou-se para junto da palmeira na borda do mar que ladeava a lojita, e desvestiu a roupa exterior que trazia para admirar a mudança. Gostou dela, de Julianna! Riu com fartura e sem medo de exageros sonoros: estava realmente bela e sedutora.
O vestidito que a cobria antes também estava a precisar de uma reforma, arriscava tímida. Voltou a entrar na loja, e reperdeu-se na zona de roupa feminina. Se a primeira escolha tinha sido difícil, a roupa era um nó cego na cabeça de Julianna. Nem a decisão acerca do escultural corpo que a sustentava tinha sido tão complicada.
Recapitulou: um corpo de sonho com medidas de capa de revista, um cabelo macio e esvoaçante que brilhava mesmo em noites sem luar, imagens exóticas entranhadas na pele… A roupa teria que ser perfeita, arriscada, que fizesse sorrir de novo. Começou por um combinado de roupa interior (só por ser mais fácil) preto acetinado, de peças reduzidas e que lhe favoreciam a estampa, com pequenos diamantes nos remates. Na foto do escaparate, um mimo. Continuou com a escolha de uns sapatos bem abertos, de tacão e tiras, igualmente negros e cravejados de brilho. Rematou o menu com um top preto decotado, com finas bolinhas brancas, debruado a cetim, e uma saia curta flexível e ondulante de roda larga, também negra.
Ansiava pela prova, e voltou a recolher-se nos braços da palmeira amiga, onde mudou de roupa. Sorriu e riu, por esta ordem, à medida que via os adereços desenharem-se lentamente sobre o corpo. A figura negra que admirava, contrastava com o brilho de uns olhos grandes de verde mel, e com as pinceladas de pele morena que restavam.
Quase lagrimou quando o a visão se fez espelho. Julianna apaixonava-se por si própria.

Em Roma, num escritório denso que sobrevivia ao peso cada vez maior dos livros, Marina Bartoli reparou no espalhafato das suas emoções. Reparou ela e a mãe, figura austera e conservadora, que não perdia pitada da vida da filha de vinte anos. Marina sabia que arriscava muita da sua pouca liberdade com as viagens que teimava em programar no seu PC. A mãe é que não sabia, e nunca chegou a saber. Nem nesse dia de excessos, conseguiu entender as razões de tal euforia. Seriam seguramente rapazolas nessa coisa da Net, mas a sua dedicada vigilância, como mandam os livros, não permitiria quaisquer anomalias. Entrando de rompante no escritório, deu com Marina de olhar tranquilo, sentada de perna cruzada, em frente a um monitor apagado.
Se se passava alguma coisa, perguntou, que não, que estava tudo normal, que o dia estava lindo nessa tarde de Primavera romana. A figura magra e sem graça de Marina reluzia algures, sem que a mãe conseguisse descobrir onde.
Na alma não me entras, sorriu Marina olhando para uma borboleta algures no abdomen.

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