in Pública, 16.08.09, p.28
'Floggers', uma tribo criada em código binário
São adolescentes narcisistas, exibicionistas, que usam calças justas e têm um estilo próprio de dança. Os floggers têm origem na Argentina e ganharam expressão numa rede social na Internet. Saltaram do ciberespaço para o mundo físico e são em número suficiente para serem considerados uma tribo.
Chama-se Agustina Vivero, tem 17 anos e vive em Buenos Aires. Em Novembro de 2006 criou uma conta no Fotolog (um foto-blogue criado em 2002, hoje uma rede social que conta com cerca de 23 milhões de utilizadores registados) com o enigmático nickname de ‘Cumbio’, o inexistente género masculino da palavra Cumbia, dança popular em vários países da América Latina. Personagem andrógena, com os seus 90-60-90 longe da perfeição, assume sem problemas a sua homossexualidade e a sua relação com Marulina, outra das indefectíveis utilizadoras de Fotolog na Argentina, onde publicam hedonisticamente milhares de fotografias pessoais (por exemplo aqui ou aqui).
Com 30 mil visitas por dia em Fotolog, Cumbio é hoje a imagem de marca do movimento flogger nascido na Argentina em 2004, uma rede social transformada em tribo urbana que reúne todas as semanas no Centro Comercial Abasto milhares de adolescentes.
Habitualmente associados a uma camada socialmente favorecida da sociedade (onde chegam a ser considerados ‘betos’ ou ‘queques’), são viciados em gadgets e desenvolveram uma moda exuberante onde sobressaem as calças justas de todas as cores, as camisolas de decote em V com cores fluorescentes, as sapatilhas de marca Converse ou de estilo similar, os óculos de sol espelhados e de dimensões generosas e a indispensável melena que lhes cobre boa parte da cara.
Contrariamente a muitas das tribos urbanas da grande metrópole (como os emos, os cumbieros, as lolitas góticas, os metaleros, os ramoneros ou os raperos) os floggers não seguem o estereótipo das outras, ancoradas em imaginários musicais ou literários; antes fazem da Internet e da Web 2.0 a sua fonte de inspiração.
A rede social em que Fotolog se transformou deu-lhes não apenas visibilidade, como constituiu o mote para a sua existência, pelo meio das acusações de outros grupos por não possuírem qualquer ideologia.
Maria José Hooft, professora no Instituto Bíblico Rio de Plata e autora do livro Tribus Urbanas, salienta “os quatro pilares que sustentam a identidade de uma tribo: uma estética, um estilo de música, os lugares mais frequentados, uma linguagem, todos eles organizados sobre a base de uma ideologia comum (ainda que muitas vezes esta se mascare como falta de ideologia, embora ela esteja sempre lá, já que a não-ideologia é uma ideologia”.
A estética dos floggers tem como fonte de inspiração a atitude narcisista dos ‘argenteens’ do século XXI que transformaram Fotolog no terceiro site mais visitado na Argentina, atrás de Google e Windows Live, e no líder das redes sociais, muito acima de MySpace e Facebook. A identificação e a necessidade de sentido de pertença a um grupo levou os floggers, até aí mergulhados no anonimato da grande metrópole (e não todos os utilizadores de Fotolog) a desenvolverem códigos de conduta e de estilo de uma forma não organizada, orientados apenas por personagens como Cumbio ou Marco Emiliano Colom, el Principito Flogger, de 15 anos (aqui).
Transformando os centros comerciais nos seus territórios de eleição, os floggers viajaram em estilo de ‘teleporte’ do ciberespaço para a realidade, construindo, repentinamente, uma comunidade gigantesca de seguidores que definem a sua moda. Consomem música electrónica, sobretudo techno, e inventaram a forma de a dançar, o estilo electro, que pode até ser aprendida online no YouTube (aqui). Adoradores de uma popularidade medida pelo número de cliques nas suas páginas de Fotolog, “os floggers são, geralmente, receptores de violência”, acrescenta Maria José Hooft. “Não a incitam, pelo menos de forma consciente, mas o certo é que alguns aspectos do seu estilo geram a irritação de outros grupos. A sua aparência apresenta-os como seres que vivem num mundo feliz, sem grandes preocupações, muito frívolos e hedonistas, e com um nível sócio-económico supostamente elevado. Todas estas características são interpretadas como uma provocação por alguns membros de outras tribos”, acrecenta Hooft.
Foi essa mesma irritação que desencadeou há cerca de um ano, o acontecimento que mais popularidade deu aos floggers: o assassinato em Córdoba de José Guillermo Cáceres, de 21 anos, supostamente às mãos de membros de outra tribo, e apenas por ser um flogger. Do incidente resultou a enorme curiosidade em conhecer o fenómeno flogger, cuja face mais visível passou a ser Cumbio, o estereótipo de uma adolescência que se alimenta da sua própria imagem e que encontra nas redes sociais o território ideal para a auto-promoção e o sucesso meteóricos numa sociedade ávida de espectáculo.
De tal forma que Cumbio publicou já o seu primeiro livro, ‘Yo Cumbio’, e foi uma das caras da publicidade da Nike na Argentina, depois de a marca ter descoberto o potencial icónico desta jovem da classe média de Buenos Aires.
Os floggers passaram a ser presença quase obrigatória em programas de televisão que abordam ou se dirigem aos adolescentes, como o que pode ser visto em (aqui).
A Web 2.0, a das redes sociais, a que promove e potencia a ubiquidade e as ligações entre indivíduos que nem se conhecem, surge de repente como a terra prometida para a fragmentação das identidades. No caso dos floggers argentinos, a partilha compulsiva de imagens pessoais em Fotolog transportou para a realidade uma tribo criada em código binário, que se alimenta do seu próprio ego. Sem ideologias, dizem alguns, até porque “La revolución no usa chupines” (ou ‘A revolução não usa calças justas’), como escrevem as tribos rivais por toda a blogosfera.