17.6.09

Crónica de um taxista II



(crónica que começa com a reedição de uma história publicada
aqui em Setembro de 2007, e que continua com o relato do mesmo protagonista em 2009)

"António Luís, o Toly de Alfama, taxista ia para 25 anos, lembrava-se bem do tipo. Apanhara-o pela primeira vez à porta do Galeto, numa daquelas quintas-feiras efeverescentes em que os clientes parece que descobrem que a vida acaba ao domingo, e que por isso já só têm três dias para gozar.
O tipo (Mr. J., assim sempre o conheceu) tinha saído de um grupo de gajos com pinta de playboys que começam a noite às 23:30, depois de terem alimentado devidamente com picanha as miúdas recauchutadas que iam fazer pela vida. Essas já tinham saído lá pelas 23:00, mas Toly evitava chegar à Av. da República a essas horas porque não podia ter o seu Mercedes empestado de perfumes baratos: é que a patroa enjoava e vomitava invariavelmente nas saídas de Domingo até Sintra com tais aromas.
O que Toly estranhou naquela noite, é que Mr. J. não tinha nada a ver com os restantes personagens do grupo! Impecavelmente embrulhado em fatos Boss, camisa branca e sapatos Sebago, Mr. J. usava um persistente perfume de business man, suave e seco, e isso agradava-lhe. Até se sentia importante a transportar o gajo, pensou da primeira vez.
A primeira corrida foi pela marginal até Cascais, com paragem prós lados do Guincho, onde Mr. J. saiu para, calma e pensativamente, olhar para o Mar, como se esperasse algum sinal ou tentasse avistar o lado de lá do Atlântico. A noite era de Primavera, clara de luar, e Toly chegou a asssustar-se com a demora: "Queres ver que apanhei um gajo zangado com a vida?", receou. Mas 10 minutos de contemplação foram suficientes para que Mr. J. avançasse decidido para o Mercedes reluzente com lavagem especial de quinta à noite.
Próxima paragem Estoril. Estoril Casino, entenda-se. Toly esfregou as mãos contentes, e a primeira imagem que lhe veio à cabeça foi a do skate laranja que andava a prometer ao puto há quatro meses! "Quando os gajos vão pró Casino, nunca mais de lá saem", sorriu. Deixou Mr. J. à porta do Casino, com a promessa de esperar pela sua saída fosse a hora que fosse! A vida começava-lhe a sorrir, e Toly relaxou. Sacou dum cigarro, e encostou-se ao Mercedes enquanto admirava Mr. J. a avançar decidido e imponente com o Rolex a reluzir no pulso, misturando-se com uma multidão de pobres almas dependentes do jogo.
Nos 90 minutos seguintes, passou o tempo a ouvir o Oceano Pacífico, um hábito entranhado da juventude longínqua, mas de que raras vezes podia usufruir com tanta calma. Conhecia o alinhamento quase de cor, e divertia-se a apostar na música que vinha a seguir.
Uma hora e meia rigorosa, e Mr. J. aparecia de novo à porta, impecável, com passos firmes e expressão sem emoções. "Pelo menos o gajo não bebeu", descontraiu Toly. Sentado calmamente no banco de trás, o distinto cliente pediu para ser conduzido a casa, em Entrecampos ficava. Toly, nessa noite, pensava que a vida de taxista assim até valia a pena. Gente importante, bom negócio, nada de extravagâncias nem as cenas maradas que Lisboa promove nas noites de quinta-feira.
Tranquilo, o trânsito, Entrecampos em 20 minutos. Na entrada do prédio com porteiro do Sr. Dr. Mr. J., como o taxista lhe passou a chamar, Toly delisgou o taxímetro e começou a fazer contas com um sorriso discreto na alma. Mr. J. interrompeu o deleite, e disparou: "Espera aqui uns dez minutos, que já volto."! Toly achou que tinha ouvido mal: "Espero? Vai voltar? Eh, claro que volta, certo?", atirou. Mr. J. sorriu, pela primeira vez nessa noite, e cantou com uma expressão dócil: "Caro amigo, esteja tranquilo, volto já.".
Toly esperava e nervosava enquanto tentava adivinhar os motivos de tão estranha paragem: "O gajo esqueceu-se do B.I.; ou foi buscar a mulher para sairem os dois; ou foi buscar algum documento para um negócio qualquer com alguém que conheceu no Casino; ou...."
Dez minutos rigorosos, o Sr. Dr. Mr. J. entra impecável no Mercedão e chuta: "Voltamos ao Estoril, amigo."! Toly arriscou perceber a cena: Mr. J. tinha ido buscar mais guito para torrar no Casino! Nova viagem, novos 90 minutos já sem Oceano Pacífico, novo regresso a Entrecampos e de novo um aceno ao porteiro, que entretanto roncava profundamente com a cabeça entre as mãos. A cena repetiu-se três vezes nessa noite, e acabou às 6:00 com Toly a pensar que, afinal, ia comprar um skate para ele e outro para a patroa para fazerem companhia ao puto. Mr. J. despediu-se tão educada e impecavelmente vestido como se estivesse a sair do Galeto às 23:30. Apenas avisou: "Amanhã vemo-nos à mesma hora no Galeto, ok?". Toly claro que sim, Sr. Dr., lá estarei, esteja descansado, pode contar comigo, sou um tipo sério...
Duraram um mês as viagens ao Estoril. Toly motorista (e não mais taxista) irrepreensível, Mr. J. cliente daqueles que já não existem, delicado e respeitador.
Foi também numa quinta-feira que Toly, enquanto tomava café ao fim da manhã em frente ao seu Mercedes com estofos novos, leu a notícia no Correio da Manhã: "Governo Português manda fechar os Casinos!" Toly abriu melhor os olhos cansados da noite com Mr. J., e leu mais abaixo: "Depois de considerar a actividade do jogo como uma fonte de graves episódios ilícitos, e destruidora de fortunas pessoais e de famílias inteiras, o Governo decidiu mandar selar os Casinos no Continente, permitindo que apenas a Região Autónoma da Madeira tenha estabelecimentos deste tipo em funcionamento para financiar o Governo Regional..."!!! Toly pasmou. Nunca tinha tido pena de Mr. J. pela dinheiro gasto no Estoril, porque a sua vida, a do Toly, tinha melhorado a olhos vistos. O pessoal em Alfama até desconfiava que ele andava metido nas ganzas, a patroa estranhava tanta abundância e o puto já corria para os seus braços quando chegava a casa. "E agora, caralho? o Mercedes não voa até à Madeira, porra. Sorte a minha... E o anormal do Alberto João é que vai controlar os taxistas na Madeira!".
Nessa noite de quinta-feira, Toly abancou à porta do Galeto, como habitualmente. Até chegou a tempo de ver as garinas a saírem para o trabalhinho! O grupo de amigos do Sr. Dr. Mr. J. saiu, previsível, às 23:30... mas de Mr. J., népias. Ainda esperou uma hora, recusando viagens a, pelo menos, uns quinze clientes. Até desistir.
Tentou mais vezes ir por aquelas bandas, mas nunca mais viu o Sr. Dr. Mr. J.
Cedo se convenceu que o seu cliente privado se tinha pirado para a Madeira, ou que se tinha "amandado da 25 de Abril". Como não viu nada nos jornais, inclinou-se pela primeira.
E nunca mais Toly fez a corrida até ao Estoril, porque, nos entretantos, o Casino foi convertido em Parque Temático com pistas de gelo e cenas prós putos.
O jogo tinha sido radicalmente eliminado do Continente, com direito a manifs de taxistas no Terreiro do Paço. Os jogadores tinham sido liminarmente banidos de cena.
Toly falou com a patroa, levou-a a um médico especialista na CUF que lhe custou os olhos da cara, mas certo é que ela nunca mais vomitou nos passeios domingueiros por causa dos aromas rascas no Mercedes. Toly passou de motorista privado de Mr. J. a taxista de meninas e playboys. O que mais lhe custou foi a falta que sentia dos abraços apertados do puto quando entrava em casa...!

Entretanto, na Califórnia, a Linden Lab mandou fechar em finais de Julho de 2007 todos os Casinos e locais de jogo em Second Life. Dos habituais 45.000 residentes online em hora de ponta, passaram a existir... 45.000 residentes online em hora de ponta!!! Não fosse o sistema de teleport, e o meu avatar abria uma empresa de táxis no metaverse!"

"António Luís, o Toly de Alfama, taxista ia para 27 anos, sentia-se envelhecer. Contava diariamente cada cabelo que mudava de cor, sempre para branco, e quase se sentia capaz de os chamar pelos nomes próprios (aos cabelos); normalmente eram nomes feios, porque esta cena de ver passar os anos todas as manhãs em frente ao espelho redondo da cómoda não tinha piada nenhuma.
A vida de Toly e as suas rotinas ferravam-lhe as costas e os músculos, sem projectos de mudança nem a mínima previsão de uma reviravolta milagrosa.
Entrava e saía do serviço de olhos fechados, mecanicamente, fiel às suas corridas que começavam, como sempre, junto ao Galeto depois dos jantares tardios do pessoal da 'boa vida'. Nunca percebeu como podia a 'boa vida' dos outros ser o sustento da sua 'vida de merda': imaginava mais justiça numa 'vida regalada' alimentada pelos gajos que estoiravam euros noite após noite nos antros da capital. Congeminava, mas por aí se ficava, no invariável reconhecimento das suas limitações intelectuais.
Todas as noites os via sair do Galeto afiambrados a loiras de papo cheio, com aquele ar de gozo de quem adormeceu a mulher e os putos depois da novela e se pirou para ir comprar tabaco à estação de serviço.
Eram todos muito iguais, olhos vidrados pelo primeiros vodkas da noite, camisas entreabertas para deixar adivinhar os fios de ouro que baloiçavam cruzes maciças, poucos bigodes fora de moda e muito gel em cabelos arrepanhados para trás à macho latino.
Toly, oficialmente um comunicador por excelência na sua arte, na verdade quase nem falava com os seus clientes! A entrada no carro era sempre intempestiva, os destinos quase sempre os mesmos: salas de bingo no início da noite, casas de alterne a partir da 1:00, pensões e espeluncas afins depois das 4 da matina.
Quase nunca apanhava os gajos no regresso a casa, porque às 6:00 o corpo pedia cama e deslizava sem hesitações até se aconchegar nas costas da patroa, que começava a despertar para preparar os putos e apanhar o metro às 7:00.
Nessa noite o grupo era igual a tantos outros, não fora a presença de uma morena espampanante de olhos cor de mar escuro ('olha, olha, lentes de contacto como as que vi no Colombo, caraças!' pensou Toly) e com um corpo meticulosamente torneado pelas mãos de um cirurgião plástico qualquer.
O que surpreendeu Toly foi a indumentária da dita: longe daquelas foleirices cheias de brilhantes para arregalar os olhos turvos dos 'otários', a miúda dessa noite na corrida das 23:30 usava um vestido de seda cinza escuro muito comprido, justo q.b. até à cintura com decote generoso, rodado em baixo. Pouco pintada, e muita pinta. O que Toly não entendia era o que fazia ali uma gaja com pinta de cliente dos táxis que param no Ritz!
Nessa noite abriu mais a pestana e os ouvidos, ainda assim meio sintonizado na Antena 1 e nas novidades sobre o seu glorioso. Percebeu que a miúda era de fora, mas não percebeu muito mais: as gajas arranhavam sempre um português esquisito ou inglês de dicionário, e, quando falavam entre elas, era um descalabro de idiomas incompreensíveis.
Fosse de onde fosse, a miúda fazia levantar um morto daqueles enterrados há mais de 20 anos!
O grupo era ruidoso, como era habitual: dois 'pipis' de trinta e tais, duas miúdas de aspecto vulgar... e a misteriosa passageira de olhos profundos que Toly jurava nunca ter visto por aquelas bandas. Falava pouco, mas movia as mãos e os braços ritmada e languidamente sempre que queria explicar qualquer coisa.
Saíram no Conde Redondo, onde a noite misturava as estrelas com cometas e pedregulhos do céu. Toly imaginava-lhes o destino, e fixou aquela imagem em formato de retrovisor até de madrugada. Provavelmente nunca mais a veria, mas essa parte da sua rotina: a incerteza de um reencontro.
O resto da noite foi para esquecer. Pouco trabalho e um regresso antecipado a casa pelo cansaço dos 30 graus da noite de Verão.
Na semana seguinte, e na outra, e na outra a seguir, Toly transportava sempre a misteriosa criatura no início da noite do Galeto para a farra da baixa. A imagem lasciva colada no retrovisor sobrevivia durante o dia, mesmo quando tomava a bica em Alfama. Cada noite tinha um pouco mais de encanto, embora Toly, taxista experiente, tenha sempre resistido à tentação de saber mais sobre a miúda, ou de a esperar mais tarde à porta de um boteco qualquer.
Até um dia! Nessa noite a misteriosa cliente não assomou à porta traseira do costume, nem na noite seguinte, nem em mais nenhuma noite de trabalho!
Toly imaginou mil e uma razões para tal desaparecimento, quase chegou à fala com o Kiko, um bófia amigo que conhecia a noite melhor que o útero da mãe, para saber o que se passava com a deslumbrante cliente.
Só não o fez porque, num domingo merdoso de passeio com a família, viu escarrapachada na porta do quiosque do Manecas a primeira página de um jornal com letras garrafais: 'Câmara de Lisboa aniquila prostituição!' Discretamente leu as letras mais pequenas enquanto a mulher via a TV Guia à borla: 'Presidente consegue negociar a deslocação das actividades nocturnas para a periferia da capital, negociando com os concelhos vizinhos a instalação de boites e bares de alterne em zonas abandonadas'!
Toly teve que ler duas vezes para perceber a manobra, mas percebeu que dali não vinha boa coisa... Nos dias que se seguiram percebeu a jogada: do Galeto nunca mais saíram os amantes da 'boa vida', e os destinos que frequentavam passaram a chamar-se 'hotéis de charme', 'tertúlias de poesia', 'lounges' e outras merdas assim incompreensíveis.
A miragem da personagem misteriosa, substitui-a Toly por suspiros compulsivos que deixavam os amigos, os clientes e a família atónitos: no meio de uma conversa qualquer, Toly... suspirava!

Entretanto, na Califórnia, a Linden Lab mandou fechar em finais de Junho de 2009 todos os locais destinados à prostituição e a actividades relacionadas com o sexo na 'grelha principal' de Second Life, criando um território alternativo para a prática de tais experiências virtuais!"

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